por Allan Menegassi Zocolotto[2]
Concepções correntes proclamam o vegetarianismo antinatural por se tratar o ser humano um ser anatômica e fisiologicamente adaptado ao consumo de carne. Enunciam ainda ser natural e moralmente justificável esse consumo, por meio do argumento da cadeia alimentar em que são, os seres humanos, consumidores carnívoros. Aqui eu afirmo o oposto: a alimentação humana com ingestão de carne é ‘antinatural’.
1. PARA INÍCIO DE CONVERSA
Importante apontar, antes de qualquer coisa, a impertinência dos dois argumentos usualmente comunicados, contidos nas linhas precedentes, quais sejam, (a) adaptação humana ao consumo de carne e (b) cadeia alimentar, mesmo que não seja esse o objetivo central do presente texto. Aqui, preocupo-me mais com o que pode ser nomeado “estrato psicológico-subjetivo” do ser humano.
Fácil é contrapor-nos à informação de que somos carnívoros. Assim como os animais herbívoros, temos caninos curtos, molares achatados, saliva com enzimas digestivas, mandíbula com boa movimentação lateral, pequena abertura da boca (em relação ao tamanho da cabeça), menor acidez estomacal, sistema digestivo longo e unhas achatadas. Também suamos pela pele e não contamos com visão noturna ou agilidade suficiente para a caça, nem mandíbula e maxilar proeminentes.
Os animais carnívoros, por sua vez, têm caninos grandes e afiados e garras para capturar e rasgar a carne de suas presas. Eles não mastigam seu alimento e seus intestinos são curtos e secretam enzimas digestivas muito ácidas.
As características biológicas humanas não deixam dúvidas. Distinguimo-nos sobremaneira dos carnívoros e não apenas destes. Milton R. Mills, MD, afirma que os seres humanos têm a estrutura de um herbívoro típico e, ao contrário do que comumente se fala, não apresentam as características mistas encontradas em onívoros como ursos e guaxinins. Comparando os tratos gastrointestinais de seres humanos, carnívoros, herbívoros e onívoros, concluímos que o corpo humano é concebido para uma dieta alimentar estritamente vegetal.[3]
Ainda que, por tradição, consumamos carne, não quer dizer que sejamos adaptados a esse fim. Há quem faça uso de cigarros, por exemplo, o que não significa serem preparados para isso. A verdade é que o corpo humano suporta, em alguma medida (em alguns casos e sujeitos mais, noutros menos), os maus hábitos alimentares e de vida como um todo.
A imagem de um animal morto causa-nos repugnância e não salivação. Não nos empenhamos em matar e comer cruas nossas presas como legítimos carnívoros o fazem. Além disso, a ingestão não-letal de carne em humanos só é possível quando antecedida por preparo (assar, cozinhar, condimentar, etc.) capaz de assegurar a não-contaminação por microorganismos. Mesmo que os nossos antepassados tenham sido carnívoros ou onívoros, a evolução e a seleção natural fizeram permanecer hoje um tipo de hominídeo anatômica e fisiologicamente não-carnívoro, herbívoro para ser mais exato.
De acordo com Sônia Felipe[4], podemos afirmar que a utilização do argumento da cadeia alimentar também é deveras irrefletida. “Não procede afirmar que ‘na natureza’ ‘os animais’ se comem uns aos outros. Correto seria dizer que, na natureza, alguns animais comem outros, enquanto a quase totalidade dos demais não o faz. A ‘natureza’ não dá lição alguma de moralidade, pois não oferece parâmetro algum segundo o qual se possa orientar ações livres.”[5]
Além de tudo isso, precisamos tomar bastante cuidado sempre que nos servimos de vocábulos como ‘natural’ e ‘antinatural’ para referirmo-nos ao que, porventura, diga respeito, ou não, ao Humano. Ainda que sejamos constituídos de matéria tão orgânica quanto quaisquer outros seres do planeta, nós, seres humanos, pertencemos muito mais ao campo do social e cultural, que se nomeia, comumente, e, pode-se acrescentar, de modo não muito claro, ‘mundo humano’.
O tornar-se homem ou mulher[6], ainda que determinado, em parte, pela corporeidade, não se encontra regido, integralmente, por ela. O homem e a mulher se fazem de um jeito ou de outro, também porque a educação tende-os para isso ou aquilo. Temos então que, socioculturalmente, se aprende a fazer-se humano.
Não comungo, em absoluto, de um posicionamento determinista. Por mais fortes que sejam os “tendenciosismos”, há sempre a potência humana (em alguma medida) de diferir e engendrar outros “eus”, porém, não há como negar que grande é o número de elementos que influenciam marcantemente a vida de cada indivíduo.
Mesmo sabendo das limitações do emprego de vocábulos com radical ‘natural’, parto do lugar de quem concebe um “natural humano” — ainda que não o mesmo em todos os locais do globo nem em todos os períodos da história — e que, tão mais se esforce para discutir acerca dos atributos desse “homem essencial”, melhor.
Centro meus argumentos de defesa da concepção da ‘antinaturalidade’ do ato de comer carne, em duas frentes: (a) “natureza humana em realização” (referência à infância) e (b) “natureza humana em manifestação” (ou “sinais da natureza roubada” ou ainda “indícios da natureza inebriada” — referência ao apego burlador e à ilusão autoinfligida).
De início, apresento as referências à infância e aos jeitos-de-ser criança que por mais que se façam distintos em todos os casos reais (e sempre se fazem), de sua média se pode emular uma “criança genérica” que aqui servirá de “tipo ideal” (em sentido weberiano) e que pode dizer da “natureza histórica do homem”, isto é, da “natureza recente do homem médio de hoje”.[7]
2. O NATURAL DO HUMANO
2.1. O “outro necessário”
É da natureza humana sensibilizar-se, afinar-se, apegar-se. É natural criar vínculos, estender-se ao outro, apelar cuidados, lançar-se aos braços alheios e tomar nos braços próprios. O bebê, frágil, indefeso e incapaz não consegue manter-se vivo quando em isolamento, de modo independente de quem o tome no colo e o trate. Carece do outro tanto para manter-se vivo quanto para tornar-se humano. É biologicamente dependente, biologicamente sociável. Necessita de quem se ocupe dele. Necessita de quem o intronize à Humanidade.
É de praxe discutir o ‘aprender a ser humano’ que se faz no meio e por meio de humanos — discussão sobremaneira pertinente e a que cientistas sociais se habilitam (ou se arrogam habilitados) a tocar.
O bebezinho humano tem necessidade de contato, cuidado e carinho e, só quando ela é atendida, o projeto de Humanidade que nele se encerra poder-se-á por em operância, não no sentido de um acontecimento prenunciado, e sim de uma constante realização (devir). Nos intercursos dessa “imprescindibilidade humana” (o outro necessário) os laços entre ‘zelado’ e ‘zelador’ são construídos e estreitados.
Por mais íntimos que sejam os ligames que vinculem ‘gerado’ e ‘geradora’ (filho e mãe biológica), o que pode haver de mais forte são os laços medrados entre ‘quem é cuidado’ e ‘quem cuida’, independentemente de quem seja o ‘cuidador’ e da vinculação “sanguínea” entre esse e o imaturo sob sua guarda. A criança se apega ao seu diligente responsável de modo intenso e verdadeiro. O alimentar, o aconchegar, o embalar, o acalentar, o ninar, o engraçar, tornam séria a relação entre ambos. A correspondência criada nos interstícios do par é deveras substanciosa para requerer “credenciais gênicas”. Basta o querer e ser querido e tem-se tudo. Disso pega a vida.
Em estado inicial, o “filhote de humano” está de todo aberto e, mais que isso, é todo reclames de enlace, apreço e filiação e sua compleição física e seus caracteres psicológicos lhes conferem os atributos mesmos capazes de fidelizar (ou tentá-lo) o humano maduro: é pequenino, inofensivo e gracioso. Pela sua natureza (de incapaz), o bebê não escolhe quem dele se ocupa e dele cuida e essa contingência faz deitar raízes o relacionamento eventual inicial e, tanto quanto o responsável se lhe faça solícito, ele constituir-se-á grato e fiel. Como tratamos de tipos ideais, extraímos quaisquer pontos “falhos” e destoantes.
2.2. O “outro desejável” e o “outro envolvente”
Com o enunciado suposto acima, acrescido dos argumentos apresentados a seguir, subsidia-se a consideração acerca da “natureza humana” que defendo aqui: a precisão de vínculo (outro necessário), a querença de vínculo (outro desejável) e a potência de vínculo (outro envolvente).[8]
Não precisamos fazer nenhum salto hipotético para concebermos que os vínculos que podem acontecer entre humanos (vínculos intraespecíficos), podem acontecer também (e acontecem) entre outros seres (vínculos interespecíficos). E falo disso para além dos casos de ‘meninos selvagens’[9] constantes da literatura científica.
Os vínculos criados não são exclusivos de ocorrer entre ‘tratador’ e ‘tratado’. Os vínculos são criáveis entre outros para além dessa relação inicial e imprescindível. O ser humano não possui um quantitativo de elos possíveis de realizar-se tampouco um sensor de discriminação de possíveis elos responsável por distinguir “o joio do trigo”, quem merece de quem não merece sua atenção. Os círculos de confiança e relação são expansíveis e com frequência se expandem. De modo natural, no fluxo fácil do desenvolver-se, o ser em humanização (em realização), vai-se “elando” (criando elos e elações — “elevações de espírito, excitações emotivas”).
Aliamo-nos, afinamo-nos e fidelizamo-nos, e nossas alianças, afinidades e fidelidades não são restritivas, mas o justo contrário: são abertas e renováveis, provocantes e rizomáticas (“polifrontais”). Aliamo-nos, afinamo-nos e fidelizamo-nos, teórica e naturalmente, com qualquer ser, humano ou não.
2.3. O mundo em experiência
Toda criança tem ânsia de totalidade e não lhe basta ver, quer pegar, cheirar, lamber, comer, integrar. À medida que crescem, as crianças (imagino não apenas as de tradição judaico-cristã ocidental) tomam o “mundo inteiro” (aquelas porções que lhe são imediatas) em experimentação. Desde que o “novinho humano” apercebe-se de um “objeto” qualquer, se empenha para com ele. Toca nos pedriscos, arranca flores, aperta o bichinho, agarra o colega.
Todo o mundo o encanta (“gente, bicho e planta”), mas em especial, os que lhe provocam, os que não se passivam, os que se mexem e reclamam soltura, (gente e bicho, portanto). Uma folha de árvore por mais colorida, macia, cheirosa e ricamente sinestesiante (devido todas as sensações capaz de provocar), logo se torna monótona e desinteressante aos olhos da criança. O maior detentor de atenções é o explicitamente vivo, o ativo, o autônomo prático, o que mexe, vira, pula, grita, chora. Esse sim se torna um desafio e tanto. Com esse, o novinho humano trata de vincular-se mais porque se parece consigo, responde aos seus “implicos”, reage aos seus ditames. Provoca-lhe em sua humanidade em ativação.
O toque, o enlace e o amasso são alguns dos elementos básicos da infância. As crianças não vibram e clamam por um animalzinho quando este se encontra em seu campo de visão? Não brincam com ele e o tomam no colo, perigosamente, inclusive, para a manutenção da vida de qualquer um dos dois? Isso se pode explicar, a meu ver, pelo egocentrismo inicial (“o mundo sou eu”) ou pelo desejo “pan-elacionista” (de elar-se — criar elos — com tudo) que aos poucos se vão amestrando e dando o imaturo a habilitar-se a humano (quando, à medida que consegue operar com o que lhe é ensinado, lhe aceitam como membro da família, comunidade, etc.).
2.4. A estima entre “mesmos-orgânicos”
A criança se afina com os animais porque deles se sente igual (como animais que todos somos), porque ainda não assimilou o antropocentrismo que vige o mundo adulto (muito embora já esteja a assimilar, devido a educação a que se vê obrigada). Ela brinca com os bichos como quem brinca com outras crianças, ela papeia com eles (ou tão-somente chia e balbucia) e os toca e abraça. Ela se amiga dum animalzinho e pede aos pais ou responsáveis que lhe permitam levá-lo para casa. Ela se cerca dele, rindo e felicitando-se profundamente. Chora sua morte, sua fuga ou sua retirada. Também briga e discute com ele. Relaciona-se de igual para igual.
O “amor”[10] por animais começa cedo em cada um de nós como decorrência natural do próprio humanizar-se: identificar-se, elar-se e fidelizar-se a todo aquele que lhe partilha a característica da senciência[11]. Somente desse modo, tornamo-nos “humanos” para com todos os humanos porque somente quando assumimos essa característica como o que conta para a integração à comunidade moral (quem têm direitos) é que nos irmanamos a todos os humanos. Abrindo-nos a todos os humanos, abrimo-nos, por tabela, a todos os animais sencientes. É no mesmo tecido moral que se costuram os direitos de humanos e animais e, mais que isso, apenas se os critérios adotados para a atribuição de direitos aos animais forem aceitos (sensibilidade e consciência de si) é que se podem legitimar os direitos humanos, evitando critérios excludentes como linguagem e racionalidade ou capacidade de rei
vindicar direitos. (REGAN apud OLIVEIRA, 2004, p.285)[12].
No processo do “naturalmente humanizar-se”, ‘humano’ não é diferido de ‘animal’. Somos todos “mesmos-orgânicos” (igualmente orgânicos, corpóreos, autônomos práticos, sencientes). Somos igualmente sensíveis à dor, ao prazer, à tristeza e à felicidade e assim nos entendemos quando criança porque ainda não antropocentrados e assim sentir-nos-íamos, quando adultos, caso o programa de antropocentrização não funcionasse conosco. O natural é a ética senciocêntrica[13] vingar pois ela é lógica e diretamente aplicável às experiências que preenchem nossos dias desde a infância.
3. O HUMANO ARTIFICIAL
A sensibilidade é o que há de mais natural no ser humano e o que primeiro e certeiramente se manifesta.[14] Naturalmente, o ser humano vai, desde criança, se filiando e vinculando aos animais (tanto quanto aos humanos), vai lhes partilhando vivências e graças. Entretanto, aos poucos, o que é vínculo geral (entre “iguais”, apesar da espécie) torna-se vínculo particular (entre “iguais”, dentro da espécie). O antropocentrismo vai-se construindo e fixando por intermédio do “culto humano”, do adestramento a ser humano que se arroga a coroa da Evolução/Criação. Desse modo, quem era amigo (o animal), naturalmente amigo, sensivelmente amigo, logicamente amigo é transformado em alimento, tradicionalmente alimento, costumeiramente alimento, convenientemente alimento.
A criança no meio rural brinca com a “cocó” (galinha) em uma hora e, em outra, a come (lhe é dado de comer). Destarte, a criança vai naturalizando o que não é natural; a criança vai internalizando o que lhe é externo; ela vai concebendo como cabível o que não traz em si, o que não sabe nem sente per se. Ela aos poucos não mais vê problema nisso e vai rompendo os vínculos que naturalmente se construíram entre ela e seus amigos animais “iguais”. Comer animais traveste-se, dessa maneira, de ato certo, bom e natural. Rompendo com o que traz consigo, naturalmente em seu íntimo, o ser humano torna-se homem artificial.
Se não fossem desatados pela educação (artificialização), os elos que se fazem entre ela e seus amigos animais, não precisaria ser dito à criança “não se deve comer carne” porque comer carne não seria nem mesmo uma hipótese credível de consideração. “Como poderia sequer pensar em alimentar-me de quem me é amigo?” proclamariam as crianças não-antropocêntricas crescidas. Entretanto, o que traz consigo em seu íntimo (o vínculo fácil e farto com animais), não é permitido consolidar-se e por isso entra em óbito (mortificação, esquecimento), ou antes, em hipostenia (debilitação, silenciamento).
4. OS SINAIS DA NATUREZA ROUBADA
4.1. Os rompantes de vínculo
Agora, deixemos nossa criança genérica e chamemos, para ilustrar o que se pretende afirmar, um pequeno camponês (caso real) que planta sua horta e cria seus animais para a subsistência própria e de sua família. Talvez seja esse um bom exemplo para aprofundarmos o debate acerca dos sinais do “homem natural” que restam em cada um apesar da artificialidade do “homem antropocêntrico” implantado e dominante em nós.
Esse homem simples do meio rural cria um porco por vez no chiqueiro para servir de provimento de carne tão logo o peso dele denuncie maturidade e a hora do abate. A ocasião é sempre de uma grande festividade: Natal, Páscoa, aniversário, casamento, etc.
É sempre o velho senhor que se encarrega da criação do porquinho, alimenta-o e dessedenta-o, e, naturalmente, tanto por descuido (outro envolvente) quanto por vontade (outro desejável), dá vazão ao que carrega em si: a precisão, a querença e a potência de vínculo.
O porquinho tem seu próprio nome. O velho senhor brinca e conversa com ele, acarinha-o, traz relva macia, trata-o com zelo como faz a um ente especial. O tempo vai passando e o porquinho crescendo e engordando, do mesmo modo que a amizade que une senhor e animal. O velho homem se apega cada vez mais burlando o prescrito pela sociedade. No entanto, a amizade, “nascida de enxerida”, “bobageira infantil”, conforme dizem os “homens” já formados (leia-se antropocentrados), não deve nem pode prosseguir.
Perguntam ao velho senhor como vai ser na hora do abate do animal, ele desconversa querendo não pensar nisso, não adiantar o passo… mas acaba soltando: “Vou pra cidade no dia… e volto bêbado!” Deixará o encargo de matar o bicho a outrem. Não seria capaz de fazê-lo. Seria traição. “Torna-te eternamente responsável por aquilo que cativas” diz Saint-Exupéry. O velho campônio sabe disso e sente assim também.
Esse é apenas um caso representativo de inumeráveis outros, facilmente registráveis. Basta conversar com quem vive cercado de animais tratando-os, mesmo que para fins comerciais, mas, especialmente, em situações de criação de subsistência. Orelha-torta, Manchada, Cotó, Perna-preta, Manquinho… todos animais que fazem dos humanos seus amigos, os conquistam o coração e os tiram a coragem e a vontade de matar-lhes.
A amizade sempre pega. No entanto, não de enxerida que é, mas de natural (imanente) e desejosa (transcendente) e ela só não se realiza quando, apesar de todos seus esforços (e pode acreditar que ela é fera nisso) o homem teima em matá-la em si. Em alguns casos, mortifica-se o “amigar” até um ponto que conforme se diz, não mais seja possível deixá-lo renascer — o homem artificial total (há que se refletir sobre essa suposta irreversibilidade).
Quem trabalha em fazendas industriais de criação de animais, em abatedouros e frigoríficos já se dessensibilizou por completo, ou está em vias disso. Já deixou (foi preciso deixar) morrer em si esse lastro natural que lhe acompanha desde que se fez gente. Os vínculos são naturalmente “vínculos gerais”, entre “iguais” apesar da espécie; socialmente é que eles assumem o tipo “vínculos particulares”, socialmente é que se internaliza o especismo (forma discriminatória pela qual seres humanos tratam seres de outras espécies animais como se estes existissem exclusivamente para servir aos interesses daqueles)[15].
Não pretendo aqui fazer juízo de valor (não tenho esse poder) sobre quem mata animais e/ou se alimenta com seus restos, até porque, conforme se sabe, a maciça maioria dos trabalhadores (de fazendas de criação intensiva, de abatedouros e frigoríficos, inclusive) não tem outra opção de trabalho (a exploração de animais e a exploração humana são faces da mesma realidade) e desde criança são educados para acharem natural e normal esses ofícios e essa dieta. Vivem imersos na artificialidade (antinaturalidade) do homem que é explorado e que explora — a naturalização da exploração.
4.2. O esquecimento forçado
Outro caso que pode ser trazido aqui é o das pessoas que não suportam matar ou sequer ver matar um animal porque, caso contrário, conforme elas mesmas afirmam, deixariam de ter coragem de comer carne. Isso só pode fazer-nos pensar numa coisa. Não se quer ver porque, caso contrário, a sua visão traria a realidade conhecida e que se tenta, forçosamente, esquecer (só se tenta esquecer o que se sabe). As pessoas esforçam-se continuamente nessa empreitada. Há ainda o caso dos que fazem isso por outros, por exemplo, pais que pensando fazer o “bem”, não dizem a verdade da carne: o que ela é, de onde ela vem, como é “produzida”.
Não são nacos de carne que estão aí para o deleite e a (suposta) saúde dos seres humanos, mas CORTES, PEDAÇOS arrancados de seres com os quais anteriormente compartilhava a vida (cadáveres, portanto). Isso é o que se mascara (tenta mascarar) e se ativamente esquece (tenta esquecer). No entanto, não importa em quantas partes foi cortado, nem de quais modos foi preparado, é sempre um corpo morto, um corpo drenado de vida o que está aí.
“A carne não existe.”[16] O ato de comer carne passa pela transformação de animais em carne o que, por sua vez, depende do inebriamento da ‘natureza humana’, qual seja, sensibilizar-se, apegar-se, fidelizar-se, irmanar-se. Somente matando em si os naturais elos e desejos de bemquerença para com os animais é que se pode reduzi-los a um monte de carne e se consegue comê-lo.
A sugestão de que cada qual cace e prepare o animal para alimentar-se dele causa repulsa à maioria das pessoas. Fuga, defesa, luta, choro, sangue é o que se vê em caçadas e abates de animais. Não creia que se perde a vida por entrega. Não há resignação da parte deles. É somente depois de um embate desesperado por manter-se vivo que a vida se lhes é roubada de seus condenados corpos.
Entretanto, não é isso que se encontra nos supermercados e não é isso que as pessoas querem saber. Elas se auto-infligem a ilusão da “vaquinha feliz”, da “galinha poedeira”, do “porquinho asseado”, da “lida gentil”, da “morte humanitária”, da “colheita da carne” como se colhe um fruto maduro do pé, sem traumas, sem gritos, sem dor, nem sangue. “Doce ilusão”.
“O ato de matar um animal é, em si, perturbador. Dizem que, se tivéssemos que matar nossa própria ‘carne’, seríamos todos vegetarianos. Com certeza, muitas poucas pessoas já visitaram um abatedouro e filmes que mostram o interior dos mesmos não são populares na TV. As pessoas esperam que a carne que compram venha de um animal que morreu sem dor. Mas eles não querem saber da verdade.” (trecho do documentário Terráqueos [17]). Uma pergunta provocante aos que se alimentam de “carne limpa” (comprada) pode ser aqui reproduzida: “se você não tem coragem de matar, por que tem coragem de comer?”.
5. CONCLUINDO
Não propus a discussão da evolução da espécie humana e do papel que o consumo de carne, eventualmente, tenha desempenhado nesse processo e sim da “natureza atual e local” do ser humano e do que diz respeito, em maior ou menor grau, às experiências de cada um de nós, desde a infância. Também não se trata de eleger culpados uma vez que as causas dos jeitos-de-ser do Hoje estão deveras emaranhadas no Ontem. Não se pode mudar o passado. E o presente não pode sê-lo de uma tacada só. PODEMOS pensar o presente e DEVEMOS projetar um futuro mais honesto às “sementes” trazidas no âmago do “homem natural médio de hoje”.
Talvez a realidade não se preste a acabados pensamentos e teorizações reducionistas tais como as que se passam aqui, mas julguei por bem arriscar-me a lançar essas palavras à folha com o fito de apresentar um contradiscurso mais que a tempo (se há quem defenda a ‘naturalidade’ do ato de comer carne, defendo a ‘antinaturalidade’ desse mesmo ato), até porque, se o Real é superior à capacidade de dele acercar-se por uma única via (explicação una), melhor provocarmos a proliferação de “altervisões” e explicações dissidentes, não nos contentando com o batido.
Crianças que se filiam aos animais, criadores que se apegam às suas criações e consumidores que precisam se iludir para manter seus hábitos e confortos me parecem indícios importantes que não podem nem devem ser negligenciados. Esses são sinais que nos dizem alguma coisa. Não é natural o que se precisa forçar mediante o mascaramento da realidade ou a mortificação de tendências. Não é natural o que imprescinde de conformação e consolidação contínuas. ‘Natureza’ que se mantêm por mentiras e omissões não é natureza, é forjamento.
Trazemos conosco, desde a infância, o apreço aos animais de modo que torná-los objetos, meios para fins de qualquer ordem não pode ser chamado natural. Natural é seu oposto: o modo-de-vida vegetariano estrito (vegano) que reconhece os animais como fins-em-si-mesmos tanto quanto você e eu o somos.
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NOTAS
[1] A elaboração do presente texto se deveu a várias críticas e sugestões de familiares e amigos.
[2] Vegano, membro do Grupo Abolicionista pela Libertação Animal (GALA), formado em Pedagogia (UFES, 2007) e graduando em Ciências Sociais (UFES). E-mail: allanzocolotto@yahoo.com.br
[3] MILLS, Milton. The comparative anatomy of eating. Disponível em:
[4] Doutora em Teoria Política e Filosofia Moral pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991) e grande promotora do veganismo no Brasil.
[5] FELIPE, Sônia T. Ética predatória? In: Pensata animal: revista de direitos dos animais. 2009. Disponível em:
[6] Não me ponho a discutir a temática ‘sexo e gênero’. Apenas para deixar o texto mais fluido é que escrevi tão-somente “homem e mulher”. O certo teria sido servir-me da expressão “homem e mulher e algo mais”.
[7] Chamo “natureza histórica do homem”, “natureza recente do homem médio de hoje” ou “natureza atual e local” o que em, alguma medida, num dado período histórico e determinado lócus geográfico, pode ser encontrado no estrato psicológico-subjetivo de cada sujeito. Por mais que sejamos diferentes uns dos outros, compartilhamos algumas concepções, trejeitos e inclinações junto aos demais seres humanos locados no mesmo tempo-espaço. A concepção de “consciência coletiva” talvez sirva para aproximarmo-nos do entendimento aqui proposto.
[8] Para além do outro necessário (determinado pela precisão de vínculos sem os quais não há humano) está, como natural do humano, o desejo, a vontade, a querença, a não-satisfação plena, a incompletude assumida e a gula de Ser mais, o não-contentamento completo, a-fome-a-sede-o-sono-o-tesão não-saciáveis de uma vez por todas. Esse “quero mais” é o fluxo do e para o outro desejável (nomeia-se abulia a ausência de vontade, a perda total ou parcial de ânimo, o estado de apatia generalizada não-salutar). Somado a isso tudo existe ainda o outro envolvente (ou cativante), aquele que não é convidado, que não se espera e, mesmo assim, se aproxima, se encosta, vai ficando e, de repente, quando se percebe, já se incluiu e foi incluído.
[9] ‘Meninos selvagens’ são crianças que, por algum motivo, ausentaram-se do convívio com humanos e acabaram sendo criadas, acredita-se, por fêmeas de mamíferos em gestação e amamentação (lobas, ursas, macacas, cabras, etc.), como seus próprios filhotes. Quando reencontradas, estabelecido o convívio e realizadas análises, essas crianças acendem o debate acerca do que sejam ‘atributos humanos’ e da casualidade da situação, caminhando no sentido de confirmar que “recebemos a natureza por herança, mas a cultura não nos pode ser dada senão pela educação”.
(TRUFFAUT, François. In: GONÇALVES, Jorge; PEIXOTO, Maria Alexandra. O menino selvagem: estudo do caso de uma criança retratado no filme “O menino selvagem” de François Truffaut. Disponível em:
[10] Relação afetuoso-emotiva construída sócio-históricamente mas deveras influenciada pelo “lastro natural” que jaz em todos.
[11] Senciência refere-se à sensibilidade e à consciência. Diz da capacidade que os animais dotados de sistema nervoso central (vertebrados superiores — mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes) possuem de sentir dor, medo, alegria, prazer, estresse, memória e até saudades. Com base nisso, Peter Singer sintetizou o princípio da igual consideração dos interesses semelhantes, pelo qual propõe que todos os interesses semelhantes sejam considerados de modo semelhante. “Interesses são interesses e devem ser considerados por igual — sejam eles os interesses de seres humanos ou de animais, com ou sem consciência de si.” Alguns teóricos concebem que o direito à vida deve ser exclusivo dos que têm autoconsciência. Contudo, quando não temos indícios científicos de que um ser tem consciência de si devemos dar a ele o benefício da dúvida.
Um ser sensível, autoconsciente ou não, é um ser de interesses e preferências. Por ser capaz de sentir dor ou alguma fruição, num estado doloroso tem a preferência de ter sua dor aliviada e merecem tê-la. (TONETTO, Milene Consenso. Do valor da vida senciente e autoconsciente. In: ethic@, Florianópolis, v.3, n.3, p. 207-222, Dez 2004. Disponível em:
[12] OLIVEIRA, Gabriela Dias de. A teoria dos direitos animais humanos e não-humanos, de Tom Regan. In: ethic@, Florianópolis, v.3, n.3, p. 283-299, Dez 2004. Disponível em:
[13] Senciocentrismo: senciência como critério definidor da pertinência à comunidade moral.
(FELIPE, Sônia T. Antropocentrismo, senciocentrismo, ecocentrismo, biocentrismo. In: Questão de ética. Agência de notícias de Direitos Animais. Disponível em:
[14] A racionalidade e a linguagem vão nascendo, progressivamente, em “humanos paradigmáticos”. Devemos lembrar daqueles cujas características os tornam diferentes do que se concebe como “humano típico” (crianças pequenas, portadores de necessidades especiais, indivíduos com comprometimentos psicológicos, etc.) e, apesar disso, não se cogita a possibilidade de excluí-los do âmbito das nossas considerações morais, muito pelo contrário, a eles é devotado um cuidado todo especial.
[15] O termo foi criado pelo cientista e filósofo Richard D. Ryder na década de 1970 e divulgado por Peter Singer desde 1975 ao argumentar em defesa do emprego do princípio da igual consideração de interesses semelhantes no tratamento dos animais. (FELIPE. In: TONETTO, M. C. Do valor da vida senciente e autoconsciente. In: ethic@, Florianópolis, v.3, n.3, p. 207-222, Dez 2004. Disponível em:
[16] “A carne não existe” no sentido de que sua verdade é “maquiada”. A existência da carne depende de condições bem controladas, é um artifício, uma invenção, uma simulação, uma encenação. Basta lembrar das embalagens dos produtos de origem animal: nelas aparecem “vaquinhas felizes”, “frangos sorridentes”, etc., todas imagens de uma realidade fictícia, carregadas de um “romantismo rural”. A “carne” depende, para continuar a existir, de um processo ativo de rompimento com o que se sabe e sente. Depende da exploração e da morte explícitas de animais cujas sensibilidade e autenticidade dos sentimentos são conhecidas. “Como podemos provar que os animais sentem dor e prazer?” Poderiam perguntar. Ora, a mesma pergunta pode ser feita para questionar como sabemos que outro humano sente dor. Se nunca sentimos a dor do outro, como sabermos se ela é real? A ciência comprova que se um ser possui um sistema nervoso central e um cérebro este ser não somente sente dor como também é ciente dessa dor. “[...] Além do mais, todos sabemos que quando se chuta um cão, ele late; quando se marca um cavalo a ferro quente, ele grita e faz expressões faciais demonstrando sua agonia e quando se mata um porco, ele grita e se debate. Animais não são meras máquinas que respondem com gritos artificiais por ajuda, muito pelo contrário, eles são capazes de sofrer e têm uma vida rica em emoções e sentimentos, que são mais sinceros que os dos humanos. [...]”
(SOCIEDADE MUNDO VEGAN. Dúvidas frequentes, respostas coerentes. Disponível em:
[17] Earthlings (Terráqueos, em português) é um documentário estadunidense de 2005, escrito, produzido e dirigido por Shaun Monson e co-produzido por Persia White. É narrado pelo ator e ativista dos direitos animais Joaquin Phoenix, que também é vegano e membro da PETA (People for the Ethical Treatment of Animals). O filme mostra como funcionam as fazendas industriais e relata a dependência da humanidade sobre os animais. Compara o especismo da espécie humana com outras relações de dominação, como o racismo e o sexismo. O filme faz estudo detalhado das lojas de animais, das fábricas de filhotes e dos abrigos para animais, assim como das fazendas industriais, do comércio de peles e de couro, das indústrias da diversão e esportes, e finalmente, do uso médico e científico. Terráqueos usa câmeras escondidas para detalhar as práticas diárias de algumas das maiores ind
ústrias do mundo, todas visando o lucro com os animais.
(Terráqueos. Disponível em:
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